Nunca a expressão: “Parece que foi ontem!” Fez tanto sentido para mim... Sei que alguns de vocês para quem pretendo enviar este: Pequeno grito de saudade, nem sequer a conheceram, nem poderão tirar suas próprias conclusões, tudo que vocês pensarão será influenciado pelo que sentem por mim, de apreço ou de desprezo.
Ainda assim, eu enviarei a vocês, porque vocês já foram ou ainda são importantes para mim... Em algum momento de nossas vidas nossos caminhos se cruzaram, e alguns de vocês já me encontraram sem ela... E se falei nela alguma vez para vocês foi difícil, foi raro as lágrimas não caírem dos meus olhos... Como agora...
Já são praticamente dez anos, ainda é noite do dia 1º de março, completa dez anos amanhã logo cedo, às 10h15, que é quando pretendo enviar a vocês... Como eu dizia: Já são praticamente dez anos, nos últimos dois anos, uma ou outra vez eu até consegui falar nela sem as lágrimas caírem, achei que elas haviam secado, mas agora sei que não (...).
O que eu mais amava nela, porque eu amava tudo nela, era o fato dela continuar sendo o meu sonho mesmo depois de crescida, porque quando se cresce, normalmente, perdemos a inocência e a magia que nos envolve na infância, mas ela não perdeu isso, não para mim...
Desde quando voltei de Teresina, em 1989, o meu sonho era ter uma irmãzinha para eu poder ajudar a cuidar dela, visto que minhas limitações físicas me impediam de me arriscar em aventuras mais radicais, como é comum na adolescência.
Então, como um presente divino, minha mãe, aos 42 anos de idade, deu a mim: Josélia!... Eu passei três dias para conhecê-la, porque eu, simplesmente, não tinha condições físicas de ir até o hospital onde minha mãe tinha dado à luz a ela... E não tinha ninguém do meu convívio que pudesse me ajudar com isso!
Mas, quando eu a conheci ela era igual ao sonho que eu sonhava acordado... Linda, afetuosa... A irmãzinha que qualquer distrófico gostaria de ter para alegrar sua vida... E assim, ela cresceu entre erros e acertos de um adolescente distrófico que só se omitia na hora de defendê-la fisicamente.
Mas, meus olhos certamente diziam o que minha boca não podia pronunciar!
Quando a gente é fisicamente “inferior” a gente tem que comer muito sapo podre para, simplesmente, continuar existindo... Eu sei disso melhor que qualquer um possa imaginar.
No entanto, eu não desisti dos momentos alegres que podia e que vivi com ela... Desde os banhos dela ainda bebê, do secar, das fraldinhas com absorventes, minhas preferidas, nem lembro com quem aprendi, mas aprendi rápido, como me é peculiar, sem falsa modéstia. Mais tarde os cabelos, as roupinhas, a comida na boca, que durou ainda até a última semana antes dela falecer.
Nossa intimidade não durou só a primeira infância dela... Durou toda as nossas vidas juntos. E mesmo não sendo a época das selfies, fiz alguns cliques dela nas câmeras descartáveis da Hermes, uma versão 1,99 das câmeras polaroid das classes “mais abastadas” daquela época, década de 1990.
E assim ela “cresceu”... Sob as asas protetoras de uma cadáver que respirava e ainda respira... E que por muita infelicidade pensa e ama (...).
Mas, nem tudo foi só tristeza em minha vida... Aos sete anos dela, passamos a viver só nós dois em uma casa... Uma casa de marimbondo, que mais parece um barraco de favela, uma favela jacundaense... Quem conheceu sabe que não estou exagerando muito. Porém, não estou desdenhando do teto que me abrigou por quase 16 anos, e onde vivi os momentos mais inesquecíveis com minha irmãzinha.
Foi lá onde eu a vi crescer... Trocar o absorvente de brincadeirinha, da época das fraldinhas, pelos absorventes de verdade... Foi lá onde eu a vi aprender a ler e a escrever... Foi lá onde ela me marcava implacável durante as aulas de reforço... Nenhuma mulher se aproximava de mim, ela estava sempre sentada comigo, à minha frente ou às minhas costas, mas sempre grudada em mim.
Foi lá também onde vi aflorar um dos seus maiores talentos: A culinária... Logo nas primeiras experiências como cozinheira a gente já percebia... Iria ser uma cozinheira de mão cheia... E foi!... Aos 13, 14 e aos 15 anos... Nem eu... Com toda minha “chatice”, como dizem, conseguia encontrar defeito em suas comidas.
Então, só me restavam duas coisas: Exibi-la, mais uma vez, como eu gostava de fazer desde quando ela ainda era bebê, e agradecê-la por atender ao meu paladar e a minha higiene.
E foi justamente num desses elogios que vivemos um dos nossos momentos mais mágico e inesquecível... Poucas semanas antes dela falecer... Era um dia comum, ela fez o almoço, colocou o meu prato e foi conversar com o pai da filha dela, no portão da Quarenta e Três, nome mais justo ao lar que me abrigou (...).
Enquanto, ela conversava com o pai da filha dela, eu comia e reconhecia o quão maravilhoso era o seu talento para cozinhar... Então, pensei: Ela merece um elogio... É tão raro a gente elogiar as pessoas que convivem com a gente... Na maioria das vezes a gente só cobra, cobra, cobra... Eu adorava oferecer os bolos, os pudins e outras guloseimas que ela fazia, até mesmo para as pessoas que não gostavam dela... Só para ver a reação deles quando eu dissesse que havia sido ela quem tinha feito aquela comida.
E assim, eu fiz: Quando ela terminou a conversa com o pai da filha dela, e entrou em casa... Eu disse a ela: “—Hoje, a comida está de acordo com seus conhecimentos!”... Essa frase eu sempre usava para mim, mas naquele dia, naquele momento eu queria dar um presente a ela, e essa frase era tudo que eu tinha!... E no final, quem ganhou um presente maior ainda fui eu: Quando eu disse isso a ela, ela se dirigiu a mim como manteiga em chapa quente, toda derretida, e disse: “—Eu também te amo... É que eu sou assim mesma!”.
Eu não havia dito: “Eu te amo!”... Mas, ela sabia que àquela frase levava consigo todo meu amor, minha gratidão, meu reconhecimento, minha felicidade por tê-la como irmã, e por ela ser tão talentosa.
Ela sabia que ela era o meu orgulho!
É difícil aceitar que ela não está mais aqui... É difícil aceitar que eu não possa mais sentir seus dedos estalando os meus dedos... É difícil aceitar que eu não possa mais sentir os seus braços me envolvendo em seus abraços... É difícil aceitar que ela não possa mais me ouvir chamar pelo seu nome... É difícil aceitar que nunca mais vou ouvir meu nome sendo pronunciado por ela!
É impossível não sentir saudades de alguém que era a nossa felicidade... A Josélia era a minha!
Parece que foi ontem àquele 1º de março de 2008, um sábado, eu estava dando aulas para o concurso público daquele ano na escola Cel João Pinheiro, pela manhã, e naquele dia eu não tive coragem de acordá-la para ela fazer o café, como eu fazia costumeiramente, acordando primeiro sua filhinha, Giselly, o melhor presente que ela me deixou...
Eu acordava a “Gi”, e pedia que ela “cavalgasse” na mãe dela para acordá-la, mas naquele dia eu não o fiz... Deixei as duas dormindo e fui para o trabalho, quando retornei ao meio dia, ela já havia sido hospitalizada... Do Municipal de Jacundá fora transferida para o Regional de Tucuruí... E quando retornou no dia 2, já não podia mais me ouvir, já não podia mais me falar... E assim, como ela chegou sem eu ir recebê-la, ela partiu sem que eu fosse me despedir... Dores que me acompanharão enquanto eu viver e lembranças eu tiver...
Obrigado também a todos que estiveram presente na despedida da minha irmãzinha... Em especial aos meus parentes, amigos e colegas de trabalho da época que estiveram lá em massa... Ela merecia, mas a presença de vocês fez daquele momento um momento especial e inesquecível.
“Infelizmente, não posso seguir seu conselho: —Não chore porque acabou, sorria porque aconteceu. Eu vou continuar chorando, porque para mim acabou antes do fim!”...